domingo, 25 de janeiro de 2009

Boa noite, Sr. Soares - um resumo


Na véspera de mais um encontro City Lights, fica um resumo do "Boa Noite, Sr. Soares":


«Mário Cláudio escolheu para personagens alguns nomes que surgem no Livro do Desassossego, e passo a citar: «Se houvesse de inscrever […] a que influências literárias estava grata a formação do meu espírito, abriria o espaço ponteado com o nome de Cesário Verde, mas não o fecharia sem nele inscrever os nomes do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, do Vieira caixeiro de praça e do António moço do escritório.»

Para narrador da história Mário Cláudio escolheu o moço do escritório, António, talvez por ser o mais novo, o mais ingénuo e por isso mais capaz de ser tocado por aquele ser estranho com quem convive à distância no escritório do patrão Vasques.

Em Boa Noite, Senhor Soares recebe um nome completo — António da Silva Felício — e é um jovem acabado de chegar da província, mais precisamente de Escalos de Cima, concelho de Idanha a Nova, para se empregar como aprendiz de caixeiro no escritório de um armazém de venda a retalho da baixa lisboeta, na prosaica Rua dos Douradores, onde o senhor Soares é tradutor.

Com a simplicidade própria de quem nada conhece, António tudo e todos observa com atenção. E limita-se a descrever o que presencia, como se o fizesse quase apenas para si próprio, sem emitir juízos. Desde o primeiro momento que o rapaz fica preso à figura do Senhor Soares que, segundo diziam os seus colegas, «embora não se distinga de qualquer outro sujeito, a verdade é que deu sempre mostras de ser um bocadinho esquisito»

No escritório todos sabem que escreve e que é poeta, e sem que António compreenda bem porquê, o certo é que goza de um estatuto especial. Incluindo para o patrão Vasques e para o guarda-livros, o senhor Moreira, que teoricamente ocupa o lugar de chefe do tradutor, mas aceita de bom grado a alcunha de Dom Barómetro que o senhor Soares lhe atribuiu devido à constante preocupação do guarda-livros com as condições atmosféricas.

Ao inserir-se no seu pequeno círculo de relações, António relata pormenores da vida de cada um, sobretudo aqueles que se vão tornando motivo de conversa dos outros. E desenrola perante o leitor um tecido urbano pardo, onde tudo remete para uma Lisboa murcha e tristonha, fechada sobre si mesma, onde nada acontece, nada é dramático, nem exaltante. Uma Lisboa onde o tempo não corre e, cito, «o dia seguinte seria de trabalho, igual aos da semana anterior, e da próxima» (p. 31), e em que uma mediocritas nada áurea todos invade. Todos não. Um ser escapa, um ser especial, que suscita a curiosidade do rapaz, por motivos que ele próprio não entende.

E à medida que avançamos na leitura, a fantástica mestria de Mário Cláudio vai-nos permitir (a nós, seus leitores) apreciar o modo como o rapaz se deixa tocar pela personalidade daquele enigmático senhor Soares. O leitor só tem acesso ao discurso interior do rapaz, que revela a sua total candura, a dificuldade em interpretar a sua própria experiência e os sonhos de viagens que não fará.

Gradualmente, a figura do Senhor Soares transforma-se no principal foco da atenção do jovem António e aquele adulto com quem nunca conversa, aquele senhor que só à saída dirige a palavra ao colectivo rapazes do escritório para lhes dar as boas noites, vai ser a figura de referência da sua juventude privada de projectos, de perspectivas e de formação.

(...) De repente, vira-se a página e passaram 52 anos. António recorda vagamente a cidade, o seu antigo local de trabalho, os sons que já não se ouvem… mas o que evoca com mais nitidez é o Senhor Soares, que tão mal conhecera e que afinal tanto o marcara. A sua vida é um arco entre a juventude e a velhice. Como na epígrafe de Shelley que abre o livro: «Youth will stand foremost ever» («A juventude permanecerá para sempre, acima de tudo»).»


Emílio Rui Vilar, publicado em 9.9.2008 na secção Recensões Críticas. Mário Cláudio — Boa Noite, Senhor Soares. Lisboa: Dom Quixote, 2008.

1 comentário:

  1. http://portucalis.wordpress.com/2009/01/26/boa-noite-senhor-soares/#comment-3783

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